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“Viral, vital”, de Leo Vidigal

Niall2

King Midas Sound é um trio que faz ouvir, dançar e repensar. O KMS se formou em 2007 do encontro entre o produtor e instrumentista ingles Kevin Martin, o poeta trinidadiano Roger Robinson e a cantora japonesa Kiki Hitomi, partindo de um conceito cada vez mais relevante nos dias de hoje: a cultura como um corpo múltiplo, que se transforma continuamente por processos de contágio. Quando a consciencia das multiplicidades únicas da cultura humana começou a emergir com uma força inexorável, muitos ainda pensavam como se tais movimentos pudessem ser enquadrados e paralisados para que fosse possível dissecá-los melhor. Explico: nos anos 1990 se alastrou uma teoria que analisava os movimentos culturais como híbridos, por mesclarem fontes diversas, extrapolando as fronteiras nacionais. A ideia de culturas híbridas tinha a vantagem de afastar um pouco essa ilusão de que a cultura praticada em um determinado país é homogênea, algo que ainda ecoa em alguns editais de incentivo. Mas a metáfora botânica do híbrido, a sugerir mudas mestiças reproduzidas em série, sempre me pareceu não dar conta de toda sorte de contatos, repulsas, projetos, recuos, recortes, colagens, repetições, transfusões e mutações da cultura levadas por uma miríade de agentes, não apenas artistas, que continuam ocorrendo de forma ininterrupta e nada estática.

Para a noção de cultura nacionalizada e limitada, há o complemento da obra fechada e protegida. Tais arcaísmos já vinham sendo demolidos na arte, mas somente começamos a ficar conscientes da possibilidade de desmonte dessa unidade da obra, na música popular, por meio do trabalho incansável dos cientistas musicais jamaicanos, como King Tubby e Lee “Scratch” Perry. Em seus laboratórios secretos, eles forjaram o dub, a versão experimental do reggae. Era o resultado do modus operandi dos sound-systems da ilha caribenha, que testaram e aprovaram os lados B instrumentais de suas cançoes, prontas para serem revocalizadas pelos DJs (nome jamaicano do MC), que animavam os bailes e multiplicavam as versoes possíveis sobre as bases instrumentais, os riddims. A desenvoltura com que cada um dos vetores caribenhos manipulava os instrumentos gravados em canais separados e as melodias vocalizadas, desde a estrutura organizadora das faixas até os detalhes mais desapercebidos, era desconcertante. A tempestade das Caraíbas não poderia ficar desapercebida por muito tempo e foi logo contagiando o ritmo e a poesia dos MCs norteamericanos, gerando o rap.

Na seara das bases instrumentais, as transmutações magnéticas e digitais do dub propagaram essa febre sobre muitos outros produtores e engenheiros de som ao redor do mundo e um deles foi Kevin Martin, do KMS. Também conhecido como The Bug, organizou em 1995 a influente coletânea “Macro Dub Infection”, que, de forma pioneira e quase didática, concretizou o conceito de produçao cultural como atividade viral. Aqui cada agente envolvido trouxe em si a possibilidade de se tornar vetor de mutação, verdadeiros desorganismos a atacar nossas certezas, no caso os gêneros e subgêneros musicais definidos e inexpugnáveis. Ela começava com o dub “The Struggle of Life”, realizado por Russell Bell-Brown, que encabeça o projeto The Disciples, no caso discipulos do produtor, compositor e dono de um dos sound-systems britanicos mais tradicionais, Jah Shaka, com quem  começou sua carreira. Esse dub me chamou a atenção tempos depois de lançado por causa de algumas falas pinçadas do filme “Land of Look Behind”(dir. Alan Greenberg), um dos documentários mais interessantes realizados sobre a Jamaica, inseridas em primeiro plano na mixagem. Outras faixas da coletanea, produzidos por nomes consagrados como Adrian Sherwood e Mad Professor, juntamente com produções de realizadores menos identificados com o reggae, mostravam o potencial subversivo e contaminante dos diálogos artísticos.

Vinte anos depois, esse potencial criativo foi mais do que cumprido, em uma explosão sonora que torna difícil a classificaçao, melhor esquecê-la e curtir o som. Martin radicalizou a sua postura e  chegou a entregar suas faixas como The Bug para que outros produtores as modificassem a ponto de não deixar nada do original, se quisessem. Essa abordagem livre foi levada ao King Midas Sound, onde a valorização extrema do processo de produção, talvez o maior legado que o dub deixou para a música popular, foi alçada à condição de princípio norteador de todo o trabalho do trio.

Depois de 3 álbuns e cinco EPs lançados, é possível traçar diversas linhas de fuga para o trabalho do grupo. A poesia de Robinson e a voz sussurrante de Hitomi se combinam com fluxo sonoro concretizado por Martin, que pode se tornar hipnoticamente intenso ou abruptamente insano. No palco adotam uma postura mais agressiva, o que torna a apresentaçao do trio pouco previsível. Mais do que um conceito tornado real, o viral no trabalho ímpar do KMS se torna vital.